O Brasil deve decidir qual será seu papel no futuro econômico e industrial do mundo neste século XXI.
Um dia participava de um seminário na Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e um empresário perguntou sobre esse papel do Brasil no contexto internacional, dizendo assim: a china está sendo a indústria, a India quer ser o escritório e o Brasil quer ser a fazenda?.
Veja como é atual o artigo do rodrigo Vianna, abaixo.
Por Rodrigo Vianna, do blog O Escrevinhador
Essa história de oferecer “Cem Dias” de trégua para o governo que se
inicia é um modismo que vem dos EUA, mas faz algum sentido. É um tempo
mínimo para que as equipes se (re) organizem e para que as primeiras
diretrizes sejam tomadas, indicando os rumos da nova administração.
O governo Dilma não chegou nem à metade dos “Cem Dias”. Ainda assim, é
possível já identificar algumas tendências – não só do governo que
começa, mas também do quadro político brasileiro.
Nesse primeiro texto, do que pretende ser um modesto “balanço” do início de governo, vou-me concentrar mais na economia.
Os primeiros sinais do governo Dilma indicam reversão da política
“expansionista” adotada no segundo governo Lula para enfrentar a crise. O
ministro Mantega, da Fazenda, teve papel fundamental em 2009 e 2010, ao
adotar um programa que – em tudo – contrariava a velha fórmula
utilizada pelos tucanos em crise anteriores: quando o mundo entrou em
recessão, com os EUA lançados à beira do precipício, o Estado brasileiro
baixou impostos, gastou mais e botou os bancos estatais para emprestar
(forçando, assim, o setor privado a também emprestar).
O Brasil saiu bem da crise – maior, gerando emprego, e ainda
distribuindo renda. Lula, quando falou em “marolinha” naquela época, foi
tratado como um néscio. E Mantega, ao abrir as torneiras do Estado,
como um estúpido economista que se atrevia a rasgar a bíblia (neo)
liberal. Lula pediu que o povo seguisse comprando. Os tucanos (e os
colunistas e economistas a serviço do tucanato) diziam que era hora de
“apertar os cintos”. Lula e Mantega não apertaram os cintos. Ao
contrário: soltaram as amarras da economia, e evitaram o desastre.
As primeiras medidas adotadas por Dilma vão no sentido inverso: corte
de despesas estatais, alta de juros, aumento moderado do salário
mínimo. É fato que a inflação em alta impunha algum tipo de medida para
frear a economia. Mas a fórmula adotada agora indica um
“conservadorismo”, ou “tecnicismo”, a imperar nas primeiras decisões do
governo Dilma. Não é à toa que a velha imprensa derrama-se em elogios à
nova presidenta, tentando abrir entre Dilma e Lula uma “cunha”, como a
dizer: Lula era o populismo “atrasado” e “irresponsável”, Dilma é a
linha justa (discreta, moderada, a seguir a velha fórmula liberal de
gestão).
Há alguns sinais – preocupantes, eu diria – de que Dilma estimula
esse movimento de proximidade com os setores mais conservadores da velha
imprensa. Mas voltarei a isso no texto seguinte, na segunda parte desse
balanço…
Voltemos à economia: as centrais sindicais fazem grande barulho por
conta do salário mínimo subir “apenas” para R$ 545. Acho positiva essa
pressão. O movimento sindical pode – e deve – criar um espaço para mais
autonomia em relação ao governo. E deve perguntar, sim: por que, na
crise, o governo quebrou regras para favorecer as empresas (corte de
impostos), e não pode quebrar a regra do reajuste do mínimo para dar um
aumento maior? É preciso mesmo tensionar o governo, pela esquerda. Ok.
Mas, modestamente, acho que a medida mais danosa adotada pela
administração Dilma, nesse início, não é o freio no salário mínimo – até
porque, pelas regras acertadas durante o governo Lula (o salário sobe
sempre com base na inflação do ano anterior mais o PIB de dois anos
antes), o mínimo deve ter em 2012 um crescimento robusto, passando dos
R$ 610. O que preocupa mais é outra coisa: a alta dos juros.
Explico: o impacto de juros altos é devastador para a estrutura
econômica brasileira. O aumento da taxa serve para frear um pouco a
demanda (e, assim, segurar a inflação), mas tem o efeito colateral de
atrair cada vez mais dólares para o Brasil. Isso é ruim? Em parte, é.
Com os juros brasileiros em alta, investidores do mundo inteiro despejam
aqui dinheiro que não vem pra investimento, mas pro cassino financeiro.
E qual a consequência? O real fica cada vez mais forte em relação ao
dólar. Já bate em R$ 1,65. Isso provoca um estrago sem precedentes na
indústria nacional. Fica muito mais fácil importar do que produzir
qualquer coisa aqui no Brasil.
Meses atrás, entrevistei na “Record News” o professor Marcio
Pochmann, presidente do IPEA. Ele é uma das melhores cabeças do governo –
cabeça que, aliás, corre riscos, porque o IPEA foi colocado sob a
guarda (guarda?) de Moreira Franco, que já andou espalhando pela
imprensa o desejo de demitir Pochmann. Hum… Seria mais um sinal
negativo. Mas, por enquanto, não se confirmou.
Na entrevista, o presidente do IPEA dizia-me que, por causa da
equação econômica que expus dois parágrafos acima, o Brasil corre o
risco de se perder na fórmula fácil da “fa-ma”.
Não se trata do Big Brother Brasil. Mas de algo mais sério. A
“fa-ma”, diz Pochmann, é a mistura de fazenda com indústrias
maquiladoras (como as existentes no México).
Ou seja: com câmbio desfavorável (por causa dos juros altíssimos que
inundam o país com dólares), o Brasil só conseguiria manter
competitividade na agricultura, contentando-se com o papel de grande
fazenda do mundo, a fornecer grãos e carne para chineses e europeus. Do
lado da indústria, aconteceria algo parecido ao que ocorreu no México,
depois de assinar o Nafta, tratado de livre comércio com EUA e Canadá. A
indústria mexicana foi dizimada. Quase tudo vem pronto de fora, e o
México mantem apenas “maquiladoras” para fazer a “montagem” final dos
produtos (aproveita-se, pra isso, a mão-de-obra barata do país).
O Brasil tem um parque industrial sofisticado – construído a duras
penas, desde a era Vargas. Nossa indústria parece ter resistido às ondas
de abertura recentes. Mas tudo tem limite.
Em artigo na “CartaCapital”, o ex-ministro Delfim Netto – a quem se
pode criticar por ter servido à ditadura, mas que nunca desistiu de
pensar no futuro do Brasil – tratou desse assunto de forma incisiva:
“Não é preciso ser economista para entender uma coisa simples: cinco
anos atrás, quando não se falava de desindustrialização, as condições
importantes para o trabalho das indústrias eram as mesmas que são hoje.
Qual é a única grande diferença entre o que tínhamos naqueles anos e o
que temos hoje? É um câmbio extremamente valorizado por uma política
monetária que mantém a taxa de juros brasileira no maior nível do mundo.
O Brasil continua sendo aquele pernil com farofa à disposição do
sistema financeiro internacional, mesmo fora da época das festas.
Todas aquelas discussões não levaram a nada: só agora os mais
sabichões começam a entender que a questão-chave que o Brasil tem de
resolver não é um problema de câmbio; o que resolve é construir uma
política monetária que, num prazo suportável, leve a taxa de juros
interna ao nível da taxa de juros externa.”
As primeiras medidas econômicas tomadas pela equipe de Dilma podem
indicar um caminho perigoso, na direção da “fama” do Pochmann e do
“pernil com farofa” do Delfim.
Lula e Palocci, dirão alguns, começaram do mesmo jeito em 2003,
lançando os juros na estratosfera. A diferença é que o Brasil vinha de
uma campanha eleitoral, em 2002, em que se tinha vendido para o mercado
(ou pelo mercado) o “risco Lula”. Era preciso evitar o “risco”. Agora,
Dilma encontrou o país crescendo, bem arrumado.
Os economistas de linha liberal diriam que, para baixar os juros e
fugir do estigma da fama e do pernil, é preciso “primeiro” cortar os
gastos públicos. É a velha lenga-lenga: “precisamos fazer a lição de
casa”. Dilma fez exatamente isso, com o corte recente de 50 bilhões no
Orçamento. E elevou os juros ao mesmo tempo. Eles cairão mais à frente?
Na época de Malan/FHC, a gestão liberal ficava sempre pelo meio do
caminho: corte de gasto, seguido de… mais cortes de gastos. Fora as
privatizações. E a hora de baixar os juros? Não chegava nunca.
Não era à toa. Juros altos garantiam o real equiparado ao dólar
(“moeda forte”, lembram? Foi assim que FHC se reelegeu em 98; depois,
desandou tudo).
Mais que isso: juros altos fazem a alegria dos banqueiros e daqueles
que vivem de aplicar dinheiro a taxas estratosféricas, “ajudando” assim
a financiar a dívida pública (sempre crescente, por causa dos juros!).
Malan, depois de deixar o Ministério da Fazenda, foi trabalhar num
banco. Palocci teve sua campanha a deputado, dizem, financiada por
banqueiros…
Palocci, agora, está na Casa Civil.
Hum…
O governo Dilma vai significar um movimento em direção ao centro, com
a gestão “técnica” da economia – que tanto encanta colunistas e
economistas tucanos?
A presença de Mantega na Fazenda parece indicar que não… Ou que “nem tanto”.
Dilma chegou a afirmar em entrevistas que uma das metas de seu
governo – além de eliminar a pobreza extrema – seria trazer os juros
reais do Brasil para patamares “civilizados”. Pode ser que a meta seja
essa, a médio prazo.
Mas o risco é perder-se no meio do caminho.
Cinquenta dias são muito pouco para qualquer leitura definitiva sobre as escolhas de Dilma.
Mas é bom olhar com atenção para essas escolhas – especialmente na
economia. E torcer para que a nova gestão não se deixe encantar pela
“fama”, e nem sirva o Brasil na mesa da banca internacional – como se
fosse um suculento “pernil com farofa”.