‘O inescapável’, um artigo de Fernando Henrique Cardoso
PUBLICADO NO ESTADÃO DESTE DOMINGOFERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Ao voltar de férias, percorri os jornais: só dá mensalão e Olimpíada. Não é para menos, mas é pouco. Consolou-me haver lido uma matéria de David Brooks sobre a campanha eleitoral em seu país. Basta ler o título, A campanha mais tediosa, para que o leitor se dê conta do baixo-astral que envolveu o comentarista ao seguir os embates entre Barack Obama e Mitt Romney. Isso a despeito de os americanos ainda estarem sufocados pela crise e de haver muito que debater sobre como sair dela e sobre o papel dos Estados Unidos num mundo cheio de incertezas. Mas o cotidiano não se alimenta de decisões históricas…
Como seria bom se pudéssemos apenas nos deliciar com a sensibilidade e a inteligência da crônica de Roberto DaMatta sobre os elos humanos que aparecem na novela Avenida Brasil, não tão diferentes dos que relacionam o antropólogo com seus objetos de estudo. Ela nos dá um banho de vida. Infelizmente, nesta semana não dá para falar apenas das estrelas. A dura realidade é que começou na quinta-feira um julgamento histórico sobre o qual não faltaram palavras sensatas. Uns, como José Nêumanne, mostraram as Falácias e enganos acerca do mensalão de maneira crua e direta. Outros, como Dora Kramer, desvendaram a Falsa dicotomia entre julgamento técnico e julgamento político. Outros ainda, como Elio Gaspari, sem negar que torcer faz parte da alma humana, insistem em que o importante é que os magistrados julguem de maneira compreensível para o povo. Que não nos confundam com o jargão da toga. E há os que abrem o jogo, mostram suas apostas, como o Zuenir Ventura, para logo dizer que tudo é mero palpite, pois não se pode saber o que passa na cabeça dos julgadores.
Por mais que se deseje ser objetivo, tenho tentado, e por mais prudente que se deva ser na antevéspera do julgamento (no momento em que escrevo este artigo), é inegável a sensação de que talvez estejamos no começo de uma nova fase de consolidação das instituições democráticas. Existe também o temor de que ela se perca. É isso que produz ansiedade e faz com que os comentaristas mais perspicazes – incluo neles Merval Pereira -, ao falarem sobre o tema, acabem por deixar transparecer o que gostariam que acontecesse. De minha parte, torço para que não haja impunidade. Calo sobre quem deva ser punido e em que grau, mas não se deve obscurecer o essencial: houve crime.
Embora, portanto, esteja engrossando o número dos obcecados com o mensalão, não posso esconder certa perplexidade diante da despreocupação com que recebemos as notícias sobre a crise internacional, como se, de fato, a teoria da marolinha tivesse substituído o bom senso na economia. Não dá para ignorar que com toda a inundação de dólares a baixo custo feita pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano), a economia do país não reage. Na Europa, por mais que seu Banco Central se diga disposto a cobrir qualquer parada dos especuladores, os mecanismos para tornar efetiva a gabolice estão longe da vista. Resultado: mal-estar social e desemprego crescente. A própria China, bastião da grandeza capitalista mundial, parece mergulhar em taxas decrescentes de crescimento, as quais, se bem que nos deem água na boca (entre 6% e 7%), são insuficientes para atender aos reclamos dos chineses e, mais ainda, para sustentar a maré dos preços elevados das matérias-primas, principalmente minerais.
Tudo indica, portanto, que os efeitos da crise mundial, somados à inércia nas transformações de fundo da economia que marcou o governo Lula, acabaram por levar nossa economia, se não às cordas, ao canto do ringue. O governo atual, não querendo beijar a cruz, embora já ajoelhado diante da realidade, despejou uma série de paliativos de todos conhecida: redução setorial de impostos, créditos de mão beijada para alguns setores beneficiados, expansão dos gastos públicos correntes e, até, desvalorizações da moeda e redução das taxas de juros. Em situações “normais” de crise, o receituário funcionaria. Um pouco de sustentação da demanda, jogando-se nos ombros de Keynes a responsabilidade pela ligeireza de certas medidas, animaria o consumo e daria aos empresários o apetite para investir. Diante, entretanto, da duração e da profundidade da crise atual, é pouco. Serão necessárias medidas verdadeiramente keynesianas que dizem respeito à sustentabilidade dos investimentos, públicos e privados, e ao incremento da produtividade. Desafio duro de roer e que não se pode levar adiante somente com os recursos públicos nas mãos de uma burocracia politizada.
É esse o desafio que o governo Dilma Rousseff tem pela frente. Quem sabe, premido pelas circunstâncias, ele finalmente reconheça, na prática, o que o lulopetismo sempre negou: que as reformas que meu governo iniciou precisam ser apoiadas e retomadas com maior vigor. Nem as estradas, nem os aeroportos e muito menos as fontes de energia darão o salto necessário sem alguma forma de privatização ou de concessão. Elas terão de vir se quisermos de fato crescer mais aceleradamente. Só com estabilidade jurídica, aceleração dos investimentos em infraestrutura e educação, melhor balanceamento energético será possível despertar não apenas, como está na moda dizer-se, o “espírito animal” dos empresários, mas a crença de todos nós no futuro do Brasil.
Ao contribuir para a consolidação da Justiça como um valor, parte essencial da modernização do nosso país, o julgamento do mensalão poderá ser um marco histórico. Basta que seja sereno e justo para injetar mais ânimo em nossa política e para que esta volte a olhar o Brasil com a clareza de que somos um país capaz de andar com as próprias pernas graças à nossa seriedade e aos conhecimentos que desenvolvemos. Só assim deixaremos de flutuar ao sabor das ondas favoráveis às economias primário-exportadoras para podermos dar rumo próprio ao nosso futuro.
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