Esta é a época ideal para visitar Altamira.
As águas do Xingu já baixaram bastante e começam a revelar as suas maravilhosas praias de areia branca.
Como ainda chove, estamos livres, por enquanto, da fumaça das queimadas e o céu preserva o seu brilho e coloração naturais que contrastam lindamente com o verde da floresta das suas ilhas.
Mas certamente não foi por essas razões que o presidente Lula escolheu este período para vir para cá, pois ele nem pensou em passar perto do rio e ficou menos de três horas na cidade.
Tal qual um presidente americano em viagem ao Iraque, ele passou diretamente, sob forte esquema de segurança, do avião a um helicóptero militar, que o levou a um estádio de futebol, onde fez um discurso de cerca de oito minutos e de lá voltou para o aeroporto, de onde partiu.
Como antecipou a Agência Estado (Lula vai a Altamira sob protestos contra Belo Monte), a escolha do estádio para a realização do comício foi estratégica, pois o local é cercado por muros e conta com apenas duas entradas, o que dificultaria a passagem de manifestantes contrários à obra.
A escolha da data para o presidente fazer uma das suas viagens mais delicadas, para "lançar" a maior e mais desastrosa obra do seu plano de governo, também foi estratégica e futebolesca: durante a Copa do Mundo (bem no intervalo entre os dois jogos fáceis iniciais da seleção e o primeiro onde as coisas podiam começar a se complicar), quando os surtos de alienação e patriotismo irracional e desenfreado atingem o seu nível máximo.
Conseguimos reunir um grupo relativamente pequeno, mas bravo e convicto, para marchar pela cidade com faixas e bandeiras contra a barragem (ver reportagem na televisão). Segundo uma correspondente do Globo, éramos cerca de 100 quando chegamos à porta do estádio.
De acordo com a Nota sobre a visita de Lula ao Pará, do Movimento Xingu Vivo para Sempre, éramos 400 manifestantes. Não pudemos entrar, pois ali já se formava uma quilométrica fila de entrada onde cada pessoa era passada em revista. Como fila única não combina com protesto e indignação, ficamos gritando e agitando as nossas bandeiras e faixas do lado de fora.
E foi queimado um boneco do presidente. Como de costume, o esquema de segurança era desproporcional, com um helicóptero da polícia que, sem necessidade alguma, sobrevoava nosso grupo sem parar. Se a estimativa do Globo quanto ao número de manifestantes estava correta, não é exagero dizer que havia mais de um policial ou militar da tropa de choque para cada manifestante.
Ainda assim, um grupo de cerca de 20 estudantes da UEPA (Universidade Estadual do Pará), contrários à construção da barragem, conseguiu entrar no estádio, dentre a multidão de quase seis mil pessoas, e vaiar o presidente durante seu discurso sobre Belo Monte. Sobre eles, o presidente, do palanque, falou: "Meia dúzia de jovens bem intencionados, mas não pensando em Belo Monte, porque não estão me ouvindo.
Quando eu tinha a idade deles eu ia para o Paraná fazer manifestações contra a construção de Itaipu. Os contrários, por falta de informação, diziam que o lago de Itaipu iria provocar terremotos na região.
Eles diziam que Itaipu iria mudar todo o clima da região. Que a água iria vazar por baixo da Terra e que iria mudar o eixo da Terra. Por estas fantasias construídas que a gente não tem de ter medo de debater. São por estas fantasias construídas que nós precisamos dizer: o estado do Pará e a região do Xingu não podem prescindir de Belo Monte".
Que Lula tenha ido para o Paraná no fim dos anos 1970, protestar contra Itaipu por oportunismo político, ignorante quanto às conseqüências reais dos projetos das grandes hidrelétricas, e hoje conte isso como uma piada, não é surpresa alguma.
Afinal, tudo o que ele fez nos últimos oito anos foi desdizer e zombar de sua trajetória de antes de se tornar presidente. Mas nos incluir a todos nessa categoria de oportunistas, chamar nossos alertas de fantasias e comparar as críticas que fazemos a Belo Monte ao delírio de que a barragem mudaria o eixo da Terra, e dizer que o governo não tem medo de discutir o projeto, isso não podemos admitir.
Como bem observou Telma Monteiro em seu blog Energia elétrica e sustentabilidade, além dos jovens, índios e ribeirinhos, entre os grandes críticos da barragem estão a equipe técnica do IBAMA, que analisou o Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte, os técnicos e procuradores do Ministério Público Federal, que estudaram a fundo o caso, os especialistas da maior parte das grandes universidades brasileiras, o juiz da Vara de Altamira, Antonio Carlos Campelo, lideranças indígenas e dos movimentos sociais.
Como destacou a nota do Movimento Xingu Vivo, à frente das forças policiais que bloquearam o acesso dos manifestantes ao estádio onde Lula falou à população, estava o representante do governo federal, Geraldo Magela (colaborador do ministro Luis Dulci, da Secretaria Geral da Presidência). Uma figura arrogante que, diante de uma tropa de choque descomunal, veio nos falar em democracia.
E nos mandar para o fim da fila. Uma fila que não levaria a nada, pois era imensa, e propositalmente lenta; inviável diante da perspectiva do evento-relâmpago que estava por começar. Enquanto Geraldo Magela nos destratava e os soldados do cordão de isolamento nos tratavam com truculência, tudo o que queríamos era negociar a entrada de um número mínimo de manifestantes para, diante do presidente que muitos de nós ajudamos a eleger, dizer que não queremos este projeto de morte.
Não porque ele possa mudar o eixo da Terra, mas porque pode desfigurar completamente a nossa região, matando o rio e destruindo suas matas. É engraçado ouvir falar em "democracia", porque aqui em Altamira ela vem sempre associada a forte policiamento e aparato militar.
Não foram poucos os que já viram uma forte semelhança desta visita do Lula com outra, histórica, do presidente Médici, que numa cerimônia bizarra derrubou, na década de 1970, uma imensa castanheira para assim inaugurar a construção da rodovia Transamazônica. Eu perguntaria ao Lula como estavam as matas do Paraná, quando ele visitou aquele estado na sua tal expedição de protesto contra Itaipu.
Diante de todo o tipo de desastres climáticos que se observam no Sul, de secas extremas a tempestades, com impacto ampliado pelo desmatamento, eu não estaria tão certo de que aquela barragem, sobretudo através de seus impactos indiretos, não afetou de fato o "clima da região".
Como estará o Brasil dentro de trinta anos se acontecer hoje na Amazônia o mesmo que houve no Paraná ao longo das três últimas décadas? Mas isso não interessa ao Lula, o iluminado, que dá seqüência ao Estado de Exceção: "Ninguém exceto eu, o desenvolvimentista democrata do ABC, tem, além da popularidade, o discernimento".
Para quem não estava acompanhando a discussão, vale lembrar, sinteticamente, os principais motivos pelos quais somos contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, não apenas ambientais, destaque-se:
1) Hidrelétricas não são energia limpa: elas emitem grande quantidade de metano, um gás de efeito estufa com impacto 25 vezes maior sobre o aquecimento global do que o gás carbônico.
Assim, Belo Monte poluiria tanto ou mais do que termelétricas de potência equivalente.
2) Belo Monte seria uma obra faraônica que gera pouca energia. O projeto geraria apenas 39% dos 11.181 MW de potência divulgados, devido à grande variação da vazão do rio.
3) A Bacia do Rio Xingu é única no planeta: mais da metade de seu território é formada por áreas protegidas e a barragem inevitavelmente causaria impactos irreversíveis na biodiversidade da região. São 27 milhões de hectares de alta prioridade para a conservação da biodiversidade, abrigando 30 Terras Indígenas e 12 Unidades de Conservação. Os impactos foram destacados pelos 40 especialistas das principais universidades brasileiras que analisaram o Estudo de Impacto Ambiental, assim como pela equipe de analistas ambientais do IBAMA que, apenas dois dias antes da emissão da licença prévia, afirmaram "não haver elementos que atestem a viabilidade ambiental de Belo Monte".
4) A barragem ameaça a sobrevivência dos 24 grupos indígenas, além de ribeirinhos e pescadores de peixes ornamentais. Canteiros de obras e novas estradas seriam construídos junto às Terras Indígenas dos Juruna da Boa Vista, Arara da Volta Grande e Juruna do Paquiçamba, com impactos irreversíveis para esses povos. E vários outros impactos indiretos igualmente graves sobre outros povos. Haveria mortandade em massa de peixes e a extinção de várias espécies. Inclusive de peixes ornamentais que são importante fonte de renda para a região e que morreriam sem oxigênio imediatamente após a formação do lago.
5) O Governo Federal, o Ministério de Minas e Energia e o IBAMA violaram a Constituição Federal Brasileira e a Convenção 169 da OIT. A Constituição foi violada em diversos pontos. Foi violada a Convenção 169 da OIT, que garante aos indígenas o direito de serem informados sobre os impactos da obra e de terem sua opinião ouvida e respeitada.
6) Haveria uma enorme imigração de trabalhadores atraídos pela obra. Mas, dos 18 mil empregos no pico da obra, só permaneceriam 700 postos de trabalho no final. A enorme migração, subestimada pelas empresas como sendo em torno de 100 mil pessoas, aumentaria a pressão sobre as terras indígenas e áreas protegidas, e haveria desmatamento e a ocupação desordenada do território.
O rápido crescimento populacional na região acarretaria o aumento da violência, da prostituição, dos acidentes, dos conflitos sociais e fundiários, das invasões. Por outro lado, nos 11 municípios que compõem a região da Transamazônica e do Xingu, somente 8 mil trabalhadores teriam condições de ocupar um emprego na usina. O que acontecerá com essa grande massa de trabalhadores – mais de 100 mil - que estão chegando na região para ocupar uma destas concorridas vagas?
7) O empreendimento obriga o reassentamento de cerca de 30 mil famílias. Ninguém sabe se serão reassentadas ou indenizadas. Quem quiser ser reassentado irá para onde?
8) A Licença Prévia foi emitida pela presidência do IBAMA, apesar do parecer contrário dos técnicos do órgão, e as medidas condicionantes não compensam os danos irreversíveis e não representam garantia legal de responsabilidade do empreendedor. Alguns técnicos do IBAMA pediram demissão, outros se afastaram do licenciamento e outros ainda assinaram um parecer contrário à liberação das licenças para a construção da usina. Estão colocando senadores "ficha suja" para acompanhar a obra. Você confia?
9) O processo de licenciamento está sendo anti-democrático e está ferindo a legislação ambiental: as audiências públicas não tiveram condições para participação popular, especialmente das populações tradicionais e indígenas, as mais afetadas. ] 10) Os impactos de Belo Monte são muito maiores do que aqueles estimados e, em muitos aspectos, irreversíveis e não passíveis de serem compensados pelos programas e medidas condicionantes propostas.
O preço de Belo Monte sobe a cada dia.
Ninguém sabe o custo real da usina!
*Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.
(Envolverde/Correio da Cidadania)
Veja aqui o lado não ambientalista
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