De uma entrevista com Frei Betto.
"No Brasil, o governo Lula optou por uma governabilidade baseada na política de conciliação com os setores dominantes e compensação aos dominados, dentro do receituário econômico neoliberal. Ao assumir a presidência, Lula poderia ter assegurado sua sustentabilidade política em duas pernas: o Congresso Nacional e os movimentos sociais. Escolheu o primeiro parceiro e descartou o segundo, que lhe era co-natural. Assim, tornou-se refém de forças políticas tradicionais, oligárquicas, que ora integram o grande arco de alianças (14 partidos) de apoio ao governo".
Descolamento das bases populares
Ao chegar ao governo, o PT preencheu considerável parcela de funções administrativas graças à nomeação de líderes de movimentos sociais. Afastados de suas bases, essas lideranças se encontram, hoje, perfeitamente adaptadas às benesses do poder, sem o menor interesse em retomar o “trabalho de base”. Instados a se manifestar, são a voz do governo junto às bases, e não o contrário.
Por sua vez, o governo adotou uma política de relação direta com a parcela mais pobre da população, sem a mediação dos movimentos sociais, como é o caso do programa Bolsa Família, que ocupou o espaço do Fome Zero. Este se apoiava em Comitês Gestores integrados por lideranças da sociedade civil, que controlavam e fiscalizavam a iniciativa. Agora, o mesmo papel é exercido pelas prefeituras. E o propósito emancipatório, de manter as famílias castigadas pela miséria no programa por, no máximo, dois anos, foi abandonado em favor de uma dependência que traz ao governo bônus eleitoral.
Tal medida enfraquece os movimentos e, ao mesmo tempo, joga o governo no risco de ceder ao neocaudilhismo: o núcleo governante, voltado unicamente ao seu projeto de perpetuação no poder, mantém, via políticas sociais, relação direta com a população beneficiária, sem contar sequer com a mediação de partidos políticos originados na esquerda. No Brasil, o fenômeno do lulismo (76% de aprovação) se descolou do petismo. O PT, por sua vez, aceitou restringir-se ao jogo do poder. São cada vez mais raros, pelo país, os núcleos de base do PT. Agora, o processo de filiação de novos militantes já não obedece a critérios ideológicos, e nem há cursos de capacitação política.
Um projeto de poder
O que significam tais mudanças? Elas apontam para a perda do horizonte socialista, que norteava o PT, o PCdoB e muitos militantes do PDT. Trata-se de sobreviver politicamente, combinando a economia neoliberal com uma política social-democrata de caráter compensatório, não emancipatório. Assim, questões candentes da pauta histórica da esquerda, como a reforma agrária, são relegadas a futuro incerto. Escolhe-se abster-se de um modelo alternativo de desenvolvimento sustentável e libertador. O projeto Brasil é descartado em benefício de um projeto de poder, para cujo êxito não faltam escândalos de corrupção (mensalão) e alianças contraídas com partidos e forças sociais e econômicas que o PT, o PCdoB e o PDT, ao serem fundados, se propunham enfrentar e derrotar.
Esperava-se que o efeito Lula viesse a demonstrar que, através do fortalecimento progressivo dos movimentos populares, seria possível conquistar parcelas de poder. E novos paradigmas seriam introduzidos na esfera de governo. Se isso significasse a superação paulatina das políticas neoliberais, e a melhoria da qualidade de vida da população, representaria um avanço. Caso contrário, não haveria como não dar razão ao profetismo político de Robert Michels que, em 1911, em seu clássico Os partidos políticos, defende a tese, até agora confirmada pela história, de que todo partido de esquerda que insiste em disputar espaço na institucionalidade burguesa termina por ser cooptado por ela, em vez de transformá-la.
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