TEXTO INÉDITO DE SAMUEL BENCHIMOL SOBRE A CRISE DA BORRACHA.
Contribuição de Anne Benchimol.
Samuel Benchimol - 1994
Os franceses chamaram débâcle, os italianos bancarrota, os americanos
crack, os latinos crise. Em bom português quebra, falência ou colapso.
Não importa o nome. O importante é assinalar que depois do período do
apogeu, o ciclo da borracha, após e já no segundo semestre de 1910, dava
o sinal de ruptura nos pregões da Bolsa e nos centros internacionais de
consumo e de produção. Os 461.740 hectares de seringueiras plantadas no
oriente asiático anunciavam uma produção de 152.000 toneladas para 1916
que acrescidas da produção amazônica e africana, ultrapassava o consumo
esperado de menos de 190.000 toneladas.
No ano de 1910, a Amazônia, nas estatísticas da Sudhevea, produzia
40.800 toneladas, enquanto a Ásia apenas 8.753 toneladas, porém em 1915
haviam sido plantados no Oriente cerca de um milhão de hectares de
seringueiras, o que prenunciava uma grande superprodução na década os
anos 20, quando, de fato, a Ásia chegou a produzir 380.000 toneladas,
ultrapassando de muito a capacidade de consumo dos mercados mundiais.
A queda dos preços teria que ser assim inevitável. Os preços da Bolsa de
Londres que, em 1909, oscilavam em torno de 3sh.3d. a 4sh.16d. a libra
peso, tiveram uma violenta subida para o máximo de 20sh.15d. em 10 de
maio de 1910 para, em seguida, no segundo semestre, cair para 10sh.2d.
em junho, e 6sh.4d em dezembro desse ano. Para tornar mais fácil o
significado dessas cotações, esses preços, quando convertidos em
toneladas, expressavam uma cotação média de 964,5 libras esterlinas por
tonelada em 1910 (equivalente a 49.469 libras de 1992, ou 74.203 dólares
americanos de 1992, correspondente a 49,4 libras esterlinas ou 74,2
dólares o kilo, a preços do mercado spot (entregue) em Londres ou New
York.
Em Manaus essa especulação altista foi amortecida por grande parte dos
ganhos da Bolas e foram retidos pelos importadores, intermediários e
stockistas das praças de Londres e New York, mas mesmo assim o mercado
de Manaus que pagava uma média de 10$000 o kilo em novembro de 1910,
teve o seu preço máximo atingido em 17$000 o kilo em abril de 1910. Já
em dezembro desse exercício houve um recuo na especulação e os preços
voltaram ao nível anterior de 6$800/7$800 ao final de dezembro. Pelas
estatísticas de exportação da época nesse ano de 1910, o preço médio da
tonelada exportada de todos os tipos, (incluindo borracha fina, de
sernambi e caucho, que tinha a sua cotação fixada a níveis de 35%, mais
baixos que a Pará – Fine Rubber) alcançou a 655 libras esterlinas a
tonelada, equivalente a 1,44 o kilo correspondente a 336 esterlinas do
poder de compra equivalente de 1992, ou 504 dólares se preferir usar o
parâmetro da moeda americana. O valor da exportação desse ano de 38.547
toneladas a preço de 1992 alcançava, assim, o total de 1,3 bilhões de
libras esterlinas, ou 1,9 bilhões de dólares atuais. Por aí se vê que os
preços altos de 1910 provocaram uma euforia passageira, pois já no fim
desse ano as cotações despencaram para menos da metade.
No ano seguinte de 1911, os preços oscilavam entre 7 sh. de fevereiro
para 4sh.8d a libra peso de janeiro para 4sh.7d. em dezembro. Em 1913 a
descida continuou, oscilando entre 4sh. e 3sh., e em 1914 os preços
caíram ainda mais, variando de 3sh. de janeiro para 2sh.9d. a libra-peso
em junho. Em termos de mil réis, as cotações das praças de Manaus
depois de atingir os 17$000 o kilo em abril de 1910 arriava para 7$000 a
5$000 o kilo em 1911; se manteve estável em torno de 6$000 a 5$000 o
kilo em 1912; caindo para 5$300 de janeiro de 1913 para 3$550 em
dezembro; em 1914, a crise definitivamente se instalou, pois os preços
nesse ano oscilaram de 3$650 até 4$000 o kilo; e em 1915 manteve-se a
mesma tendência do ano anterior. Preços esses pagos pelos aviadores e
exportadores da praça de Manaus que, em média, representavam cerca de 60
a 70% dos preços pagos aos seringalistas se tivessem que descontar os
fretes dos seringais até a cidade e mais as despesas de impostos, taxas,
capatazias, comissões e outras despesas que oneravam a borracha naquele
tempo. Os seringalistas por sua vez, ao fazerem as suas contas aos
seringueiros deduziam do preço vendido em Manaus, 10% de comissão e mais
10% a título de tara de quebra de peso. Assim, os seringueiros que
haviam recebido cerca de 7$000 a 8$000 o kilo no auge de 1910, em 1914 e
1915 deviam ter recebido cerca de 2$000 o kilo no “toco”, conforme a
gíria do seu tempo.
Essa rebaixa violenta nos preços da borracha teve reflexos violentos que
alcançou tanto os exportadores, aviadores, como os seringalistas e
seringueiros. Falava-se, na época, que o custo de produção, em 1914, se
situava em 4$000 o kilo para os seringueiros, enquanto que os
compradores ofereciam apenas 3$000 o kilo, conforme depoimento do
deputado Luciano Pereira, em discurso na Câmara dos Deputados em
26/10/1914, refletindo as reivindicações e os lamentos das classes
empresariais da Associação Comercial do Amazonas.
Como conseqüência dessa quebra de preços, resultante da perda do
monopólio da borracha, com a entrada da produção dos seringais
asiáticos, toda a estrutura produtiva da Amazônia começou a desabar. Os
seringalistas endividados não conseguiam pagar, com os preços aviltados,
os financiamentos dos aviadores e assim deixavam ao desamparo os
seringueiros, que desprovidos dos ranchos e dos aviamentos do depósito e
do barracão não tinham como e porque continuar produzindo. Muitos
abandonaram as suas estradas e procuraram sobreviver em outras vilas e
cidades rio-abaixo.
Os que podiam voltavam ao Ceará e outros estados
nordestinos. Muitos deles, no entanto, endividados e sem saldos,
preferiram ficar nas suas colocações para se tornar caçador de peles de
animais silvestres, coletor de ouriços de castanha ou simplesmente se
dedicavam a agricultara de subsistência com os seus roçados de mandioca,
milho, feijão e arroz. Os seringalistas também buscavam alternativas e
estratégias de sobrevivência, tentando diminuir os custos de produção,
através da produção de alimentos nos seringais, despendiam o pessoal
localizado nos centros mais distantes, davam a conta daqueles
seringueiros menos produtivos, diminuíam o número de burros e comboios,
despendiam os funcionários do beiradão e do escritório. Outros, mais
endividados, entregavam os seus seringais aos aviadores, em pagamento de
suas dívidas ou deixavam que estes o executasse e arrematasse, ou
adjudicassem as suas propriedades em hasta pública nos leilões
judiciais.
Os aviadores, assim, se tornaram grandes proprietários de terras no
interior. Um deles, B. Levy & Cia., conforme vimos, quando de sua
dissolução em 1945 deixou um espólio de 309 seringais, e J. G. Araújo
tornou-se praticamente dono de imensos latifúndios, propriedades de
seringa e castanha no rio Negro, Solimões, Madeira, Purus e Juruá. Nunca
foi feito um inventário de suas propriedades, pois a firma se extinguiu
e de seus arquivos doados à Universidade do Amazonas não consta os
originais nas cópias das escrituras e registros de imóveis dessas
propriedades. Mas como o número de seus aviadores eram acima de 500
seringalistas é bem provável que o número de seringais recebidos em
pagamento de suas dívidas tenham sido superiores a 1.000, pois segundo
depoimento do seu último .................... Jaime de Araújo, a firma
tinha uma sala cheia de cofres com escrituras e registros de seringais
que ninguém sabia mais avaliar o seu número, nem o seu valor. Essas
propriedades tinham virado pó nas mãos dos seringalistas e aviadores,
pois o seu capital de financiamento havia sido convertido em terras sem
preço e sem valor.
As companhias de navegação e os armadores particulares passaram a sofrer
igualmente o déficit em suas linhas, diminuindo o número de saída dos
seus vapores, suprimindo escalas, ou desativando e desarmando as suas
gaiolas e chatas. Só a Amazon River, como vimos, declarava que no ano de
1913 havia sofrido um déficit operacional de 1.500:000$000, equivalente
a 4.931.534 libras esterlinas em 1992, ou 7,4 milhões de dólares
atuais, que desejava ser ressarcido do Governo Federal, que negou o seu
pleito, pois as classes empresariais temiam o monopólio inglês de
navegação fluvial, pois muitos dos armadores locais, sem subsídios,
estavam com os seus vapores desativados por falta de movimento de cargas
e passageiros.
As propriedades e imóveis em Manaus, construídos pelos portugueses, na
época do boom, ficaram desvalorizados e muitas casas estavam
desocupadas. O deputado Luciano Pereira informava na Câmara dos
Deputados que das 8.000 casas existentes em Manaus, 2.000 estavam
desalugadas, à espera de inquilinos que haviam abandonado a cidade,
regressando para o Nordeste, ou se retirando para Portugal, França,
Inglaterra e Alemanha. Fundou-se, inclusive, a Sociedade Repatriadora
Lusitânia, com sede no Luso Sporting Club de Manaus, para promover a
emigração de portugueses pobres e desamparados pela crise avassaladora.
Muitos deles abandonaram as suas propriedades e foram residir em suas
quintas e aldeias do Minho, Porto, Tras-os-montes, Pôvoa de Varzin, de
onde provinham, deixando as suas firmas e casas nas mãos de
procuradores, corretores e administradores de imóveis. Muitas dessas
propriedades jamais foram vendidas e os aluguéis recebidos, muitas
vezes, eram retidos por esses intermediários e jamais transferidos para
os seus legítimos donos.
Alguns portugueses que ficaram deixaram de
mandar as pensões e mesadas para os seus familiares em Portugal que
passavam necessidades. Muitos espanhóis aqui residentes e em Belém
também abandonaram a região e voltaram para a Galícia, terra e província
de suas origens. Judeus franceses de Alsácia e Lorena abandonaram os
seus seringais e os seus estabelecimentos comerciais e regressaram à
França, onde muitos foram se estabelecer em Paris ou em outras vilas e
cidades franceses. Entre eles Marius & Levy que haviam construído um
grande patrimônio em seringais como fornecedores de obras de arte e
mosaicos para a construção do Teatro Amazonas, e como aviador-exportador
e que com a riqueza acumulada havia construído o mais alto edifício
comercial da cidade, de 4 andares, com estrutura de aço inglês e azulejo
importado da França, situado na atual Rua Marechal Deodoro (antiga Rua
do Imperador) com a Rua Teodureto Souto e Avenida Eduardo Ribeiro (atual
edifício dos Correios e Telégrafos), não resistiu a crise e fechou o
seu estabelecimento comercial, alugou os 4 pavimentos para a firma B.
Levy & Cia, que havia resistido a crise, se mudou para Paris. Mais
tarde, em 1914, aceitou uma oferta dos Correios e Telégrafos, feita pelo
seu delegado Raul de Azevedo e com ajuda da Associação Comercial
conseguiu vender esse suntuoso edifício para a referida repartição, que
até hoje tem lá a sua sede. Os judeus marroquinos de origem portuguesa e
espanhola, provindos de Tânger, Ceuta, Casablanca ficaram na Amazônia,
pois tinham feito uma opção de mudança definitiva de viver na região.
Para poderem sobreviver, durante a crise, também abandonaram os
seringais, regatões, flutuantes e estabelecimentos do interior para se
fixar de vez em Belém e Manaus.
A força da crise atingiu também as concessionárias inglesas do serviço
público. A Amazon Telegraph Co. que operava o serviço do cabo
telegráfico não conseguiu operar devido os altos custos e a queda do
movimento de telegramas, pois as altas tarifas de 2$400 por palavra,
vigente em 1913 (Loureiro 1986:130) equivaliam a 6 palavras por libra
esterlina da época – ou o equivalente a cerca de 50 libras esterlinas,
ou 75 dólares americanos de hoje, tornavam impossível o uso de seus
serviços, que somente os altos preços da borracha dos tempos áureos
tornavam inviável o seu funcionamento. Pior ainda era a situação das
comunicações telegráficas do interior, pois segundo Loureiro (op.cit) um
telegrama de Sena Madureira ou Empresa (atual Rio Branco-Acre) para
chegar em Belém pagava a exorbitante quantia de 6$400 por palavra, quase
meia libra esterlina, ou cerca de 31 dólares americanos de hoje. De
Porto Velho para Manaus a palavra custava 2$000 e de Manaus a Belém
2$400, ou 12 dólares de hoje. A esses preços, a comunicação tornou-se
inacessível, inviabilizando as operações do comércio, tanto da capital
como do interior.
A Manaos Harbour que pertencia ao grupo do investidor inglês Alfred
Booth, também proprietário da Booth Line e da Manaos Tramways (bondes e
energia elétrica) também atravessava sérias dificuldades, solicitava
aumentos de suas tarifas de capatazias e atracação e obteve do governo
federal a concordância para a não conclusão das obras dos armazéns do
retro-porto e a prorrogação do seu contrato por sessenta anos, numa
tentativa de recuperar o capital investidor e fazer face aos serviços de
manutenção e operação do sistema. A mesma situação se passava no porto
de Belém, cuja concessionária a Port of Pará se encontrava em
dificuldades e o seu proprietário Percival Farquhar, o maior investidor
americano na Amazônia, pois era também o maior acionista da Amazon River
e da Madeira-Mamoré Railway, insistia em obter compensação, subsídios e
aumento de tarifas. Os seus investimentos não estavam dando o retorno
esperado e os déficits se acumulavam na Amazon River que, em 1913,
apresentou um déficit operacional de 7,4 milhões de dólares no valor
atual.
A Madeira-Mamoré teve a sua construção iniciada em 1907 e concluída em
1912, a um custo de 81.675:731$612, equivalente a 5.445.048 libras da
época e 269 milhões de libras esterlinas, ou 403 milhões de dólares de
hoje, entrou em dificuldades pois a borracha boliviana que era o seu
principal produto de frete diminuiu de volume e conseguiu escoar por uma
outra linha férrea para o Oceano Pacífico. Percival Farquar, o seu
construtor, recebeu do governo federal, como pagamento das obras, apenas
40.424:872$622 (vide Manoel Rodrigues Ferreira, A Ferrovia do Diabo, pg
305), ou 62.194:394$366, segundo Roberto Santos, 1980:238, ou seja, o
equivalente a 3.093.478 libras da época, ou 104.497.7129 esterlinas de
1992, ou cerca de 156 milhões de dólares atuais. Se forem verdadeiros os
números acima, Percival Farquar havia perdido cerca de 202 milhões de
dólares na transação, o que é difícil de acreditar.
O abastecimento de água de Manaus e a construção do sistema de esgoto
que era uma concessão do Governo do Estado à Companhia Inglesa, cujo
capital inicial era de 400.000 libras depois aumentado para 800.000
libras esterlinas de 1906, ou 42,6 milhões de esterlinas, ou 64 milhões
de dólares atuais, teve a sua estação de tratamento de esgoto situada na
Rua Isabel (atual Teatro Chaminé) destruída por uma revolta popular.
Segundo depoimento do Prof. Agnelo Bittencourt, 1925:309, esse motim foi
causado pelo “corte da derivação d’água a todos as casas cujos
inquilinos estivessem em atraso do seu pagamento à Manaos Improveroment e
não satisfizessem os depósitos para garantia do consumo d’água”. Esse
corte havia seria garantido por uma ordem do Governador Jonathas
Pedrosa, que havia mandado uma tropa de cinqüenta praças da Polícia
Militar para garantir a ordem. A versão dada por esse governador tinha
mais conotação política, conforme se verifica pela sua mensagem de 10 de
julho de 1913, transcrita por Agnello Bittencourt, 1925:308, como
segue:
Os inimigos da paz e da ordem, cançados de ameaças constantes a este
governo, abusando desta ampla tolerância, puzeram em prática suas
sinistras urdiduras transformando o Quartel do Batalhão de Segurança em
um reduto de sua politicagem mesquinha e excessiva perversidade.
Estabelecem-se o pânico em toda a cidade ... e os sediosos sahiram à
rua, e, guiados por baixos instrumentos da politicagem arruaceira,
empastelaram-se órgãos de publicidade desta capital e dirigindo-se ao
escriptorio da Manaos Improvments commeteram actos de verdadeira
selvageria. Para minha garantia pessoal recolhi-me com toda minha
família no Quartel General desta Região de onde solicitei do honrado
Presidente da Republica que promptamente m’o prestou ...
A Manaos Markets and Slaughterhouse Ltd., concessionária inglesa do
serviço do matadouro e do mercado público, em face dos precários
serviços que a crise ocasionada com o quadro no consumo de carne verde e
no abate de animais foi encampada, cuja indenização, fixada em 1913,
pelo governo que concordou em pagar 3.000:000$000, a partir do segundo
semestre de 1914. As duas indenizações da Manaos Market e da Manaos
Improvments custariam, assim, ao governo estadual a vultuosa quantia de
10.500:000$000 (7.500$000 da Manaos Improvments e o saldo da Manaos
Markets), importavam em 698 mil libras esterlinas de 1913, ou 34.523.080
libras de hoje, ou 51,7 milhões de dólares correntes). O Estado do
Amazonas agia como se ainda estivesse nadando em ouro, quando de suas
receitas públicas minguavam de forma desastrosa e incontrolável.
Vejamos o comportamento da receita pública do Governo do Estado do
Amazonas durante a débâcle de 1911 a 1924 (Agnello Bittecourt 1925:230):