Política científica e tecnológica, pelo neurocientista Miguel Nicolelis, do Instituto de pesquisas de Natal
Miguel Nicolelis é um dos 20 pesquisadores mais importantes do planeta. Apontado pela revista Scientific American. Diretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade de Duke, nos EUA, Miguel Nicolelis é considerado um candidato forte a trazer um prêmio Nobel para o Brasil.
Suas descobertas já apareciam na lista das dez tecnologias que devem mudar o
mundo, divulgada em 2001 pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
Em 2009, pela primeira vez um brasileiro vai para a capa da revista Science.
Foi há pouco nomeado membro da Pontifícia Academia de Ciências, no Vaticano –
ele que numa entrevista pioneira no Brasil para Caros Amigos, quando eu era
editor da revista, em maio de 2008, declarou ao perguntarmos se acreditava em
Deus:
“Não. O único Divino que eu acredito é o Ademir da Guia [craque do Palmeiras
entre 1960/70 apelidado de Divino pela crônica esportiva]. Aliás, tenho uma ótima
relação com Deus: ele não acredita em mim e eu não acredito nele.”
Criticou a gestão científica no País, especialmente em São Paulo. E questionou
os critérios – políticos – para a escolha do ministro da Ciência &
Tecnologia, Aloizio Mercadante.
Leia aqui parte da entrevista concedida a Alexandre Gonçalves ao Estadão.
O que você acha da política científica
brasileira?
Está ultrapassada. Principalmente, a gestão científica. Foi por isso que eu
escrevi o Manifesto da Ciência Tropical (publicado em primeira mão no blog
Viomundo). O mais importante nós temos: o talento humano. Mas ele é rapidamente
sufocado por normas absurdas dentro das universidades.
Não podemos mais fazer pesquisa de forma amadora. Devemos ter uma carreira para
pesquisadores em tempo integral e oferecer um suporte administrativo
profissional aos cientistas.
Visitei um dos melhores institutos de física do País, na Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE), e o pessoal não tem suporte nenhum. Se um americano do
Instituto de Física da Universidade Duke visitar os pesquisadores brasileiros,
não vai acreditar. Eles tomam conta do auditório, fazem os cheques e compram as
coisas, porque não é permitido ter gestores científicos com formação específica
para este trabalho. Nós preferimos tirar cientistas que despontaram da
academia. Aqui no Brasil há a cultura de que, subindo na carreira científica, o
último passo de glória é virar um administrador do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência e
Tecnologia (MCT) ou da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp). É uma tragédia. Esses caras não têm formação para administrar nada.
Nem a casa deles. Não temos quadros de gestores. A gente gasta muito dinheiro e
presta muita atenção em besteira e não investe naquilo que é fundamental.
Absurdo anticorpos apodrecer por causa da burocracia. Alguém precisa dizer: “Chega!”
Qual é a diferença nos mecanismos de financiamento e gestão científica nos
EUA e no Brasil?
O investimento privado e público americano – sem contar os gastos do Pentágono
que, em parte, são sigilosos – é equiparável: cerca de US$ 250 bilhões anuais
cada um (o equivalente a R$ 425 bilhões). Eles também enfrentam o problema de
que as empresas privadas não costumam investir em pesquisa pura, meio de
cultura de onde saem as ideias aplicadas. Contudo, o governo não investe só em
universidades. Ele também coloca dinheiro em empresas e em institutos de
pesquisa privados. Este é o segredo.
No Brasil, a grande maioria dos mecanismos públicos de financiamento está
voltado para universidades públicas. Sendo assim, você não contrata cientistas
e técnicos para um projeto, pois depende dos quadros da universidade. Mas esses
quadros estão dando 300 horas de aula por semestre. Não dá para competir com um
chinês que está em Berkeley pesquisando o dia inteiro e recebendo milhões de dólares
para contratar quem ele quiser. Como fazer ciência sem gente?
Na realidade, os americanos não contam com pessoas mais capazes lá. O que eles
têm de diferente é um número muito maior de pesquisadores, processos
eficientes, gestão científica profissional – a melhor jamais inventada – e
dinheiro. Nos Estados Unidos, sou visto como um pequeno empreendedor. Recebo
dinheiro do governo americano e uma parcela menor de investimento privado.
Tenho assim uma “padaria” que faz ciência: posso contratar o padeiro, o
faxineiro e a atendente de acordo com as necessidades do projeto. Esse
empreendedorismo não é permitido pelas leis brasileiras. As mesmas regras que
regem o gasto de quaisquer dez mil réis que um cientista ganha do governo
federal servem para controlar licitações de centenas de milhões de reais para a
construção de estradas, hidrelétricas. Achar que um cientista vai desviar
dinheiro para fazer fortuna pessoal é absurdo. O processo de financiamento deve
ser mais aberto, com mecanismos simples de auditoria. Além disso, deveria ser
mais fácil importar insumos e, com o tempo, precisaríamos atrair empresas para
produzi-los aqui. É um absurdo ver anticorpos apodrecer no aeroporto de
Guarulhos por causa da burocracia. Alguém no topo da pirâmide – o presidente da
República ou o ministro da Ciência e Tecnologia – precisa dizer:
“Chega! Acabou a brincadeira.”
“Não precisamos mais de caciques. Precisamos
de índios. Investir na massificação dos talentos.”
É um desperdício gigantesco de talento e de dinheiro. A China está recuperando
pesquisadores que emigraram para os EUA oferecendo condições de trabalho ainda
melhores que as americanas. Milhares de brasileiros voltariam ao Brasil se
tivessem melhores condições para trabalhar. Mas o sujeito vem para uma
universidade federal e é obrigado a dar 300 horas de aula por semestre.
Perdemos o talento. Além disso, ele conquista a estabilidade de forma quase
automática. Que motivação vai ter para crescer? Há talentos, mas os processos são
medievais. E o cientista brasileiro tem muito receio de bater de frente com as
autoridades para reivindicar o que ele realmente precisa.
Quanto o Brasil deveria investir em ciência?
O Brasil precisa investir de 4% a 5% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em ciência
e tecnologia para encarar a China, a Índia, a Rússia, os Estados Unidos, a
Coreia do Sul. Esses são os jogadores com quem devemos nos equiparar. É o mesmo
percentual que já investimos em educação. É essencial realizar os dois
investimentos: por um lado, para formar gente e iniciar a revolução educacional
que o País precisa; por outro, para usar o potencial intelectual dessas pessoas
na produção de algo para o País. Atualmente, investimos 1,3% do PIB. No Japão, é
quase 4%. Isso explica muita coisa.
Você afirmou diversas vezes que a ciência precisa ser democratizada no País.
Sem dúvida. É uma atividade extremamente elitizada. Não temos a penetração
popular adequada nas universidades. Quantos doutores são índios ou negros? A ciência
deve ir ao encontro da sociedade brasileira. Essa foi uma das razões que me
motivaram a escrever o manifesto. Até bem pouco tempo, a ciência era uma
atividade da aristocracia brasileira. Há 30 ou 40 anos só a classe mais alta
tinha acesso à universidade. Não precisavam de financiamento porque tinham
dinheiro próprio.
Hoje, nós precisamos de cientista que joga futebol na praia de Boa Viagem.
Precisamos do moleque que está na escola pública. As crianças precisam ter
acesso à educação científica, à iniciação científica. O que também implica uma
democratização na distribuição de oportunidades e recursos em todo o País.
Estamos trabalhando com 21 crianças da periferia de Natal. Elas nem mesmo
entraram no ensino médio e já estão sendo incorporadas às linhas de produção de
ciência do nosso instituto. Quatro participaram de um projeto-piloto em que
aprenderam a usar ressonância nuclear magnética de bancada para medir o volume
de óleo nas sementes do pinhão-manso do semi-árido nordestino. E classificaram
as diferentes sementes de acordo com a quantidade de óleo. Duvido que exista
algum técnico na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) melhor
do que essas crianças.
Não precisamos mais de caciques. Precisamos de índios. Devemos investir na
massificação dos talentos. Esses moleques vão decidir o que vai ser a nossa ciência.
Se chega um jovem muito talentoso que quer investigar besouro, devemos
responder:
Como você avalia o governo Lula?
Apoiei e apoio incondicionalmente o presidente Lula porque vivemos hoje o
melhor momento da história do País. A proposta global de inclusão do governo
Lula – e espero que será a mesma com a Dilma – é aquela que eu acredito.
Contudo, os detalhes devem ser corrigidos. Admiro profundamente o ministro da
Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende. Tivemos grandes avanços como a criação
dos INCTs e dos fundos setoriais. Mas o ministro não enfrentou a estrutura.
Talvez não pudesse, por não ter condições práticas ou por fazer parte dela, por
ter crescido nela. Em oito anos, nunca fui chamado para dar uma opinião no MCT
ou para apresentar os resultados do projeto de Natal. Sei que outros
cientistas, melhores do que eu, também não foram chamados. É curioso. Mas fui
chamado pelo Ministério da Educação. O ministro (Fernando Haddad) é o melhor
que já tivemos na história da República. Ele criou a infraestrutura que será
lembrada daqui a 50 anos como a reviravolta da educação brasileira. Com o
Haddad eu consigo conversar e nossa parceria está dando resultados.
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