Recebi um e-mail de um amigo que se encontra Thimphu, capital do Reino do Butão que se encontra participando em uma reunião de especialistas sobre o tema da Felicidade Interna Bruta (FIB).
Leia e-mail aqui.
Desde o sábado, 26 do corrente, estou em Thimphu, capital do Reino do Butão, país do Himalaia espremido entre a China e a Índia. para participar de reunião do grupo de peritos em que me puseram para discutir como espalhar em termos globais a proposta butanesa de substituir o PIB (produto interno bruto) pela noção de felicidade interna bruta (FIB) como objetivo do desenvolvimento. A FIB faz parte do paradigma da economia butanesa há quase 40 anos. Não é novidade, portanto. Ganhou força quando perguntaram cavilosamente, em 1982, no exterior, ao quarto rei do país acerca da força da economia butanesa e seu PIB. O rei, de sopetão, respondeu: “A felicidade (FIB) é mais importante do que o PIB”. Foi uma coisa intuitiva, no meu entender. Não o resultado de raciocínio lógico, linear.O Butão é um país budista. A população crê que seu quarto rei (que está vivo, tem 58 anos, mas passou o trono ao filho, de 32 hoje) é uma reencarnação do Senhor da Compaixão. Ele vive modestamente, para um ex-rei, anda incógnito de bicicleta, cultiva a terra. Além disso, conseguiu convencer seus súditos de que a democracia, com um primeiro ministro eleito, é melhor do que uma monarquia absoluta tal como antes. A população o queria rei com todos os poderes. Não foi fácil mudar a opinião do povo. Uma constituição foi aprovada em 2006, o rei abdicou, houve eleições. Agora tem-se parlamento, primeiro ministro, oposição. A sociedade é aberta. Admira mesmo ver que um país onde se valoriza tanto a tradição (os homens, por exemplo, usam uma espécie de quimono que vai até os joelhos, meiões e sapatos; as mulheres vestem saias longas, com blusas e mantos, todos de cores belíssimas) não demonstra conservadorismo. Pelo contrário, há igualdade de direitos entre homens e mulheres, liberdades políticas amplas, respeito às minorias.
Andando pelo país para conhecê-lo como parte do trabalho do meu grupo, impressiona ver como não há miséria nele. E nem gente sequer gordinha. Não se percebem desníveis sociais grandes, muito menos os indecentes. Não vi ainda ninguém pedindo esmola. Os campos são bem cultivados. Violência baixíssima. Saúde e educação gratuitas para todos. Em qualquer lugar fala-se inglês bom. Na segunda-feira, fomos a uma reserva biológica a 6 horas de carro de Thimphu, onde se protege a ameaçada espécie da cegonha do colo negro (no caminho, passamos por um ponto, de 3.200 m de altitude, de onde se avista em todo esplendor, no horizonte, a cordilheira fantástica do Himalaia, inclusive o ponto culminante do país, de 7.550 m de altitude). Na reserva, muito bem cuidada, Vera e eu, mais um casal americano, a guia e o motorista do carro, nos hospedamos e dormimos numa casa de pequeno proprietário rural (foi um recebimento com demonstração de extraordinária gentileza). A casa era ampla, bem decorada com motivos butaneses budistas. Nela, mora uma família de pai, mãe, um filho de 20 anos, outro de 8, e filha de 18. Pois bem, ali no mato, longe de qualquer lugar mais habitado, o rapaz e o menino, de enorme simpatia, falavam ótimo inglês (brinquei com o americano: “É melhor que o meu!”). A mãe entendia um pouco. A filha que não estava, fala. O pai, não. Aqui, na verdade, se tem uma língua nacional e 19 dialetos. Nossa guia e o motorista, entre si, conversavam no de Thimphu. Isso tudo me causa enorme admiração. Como um país economicamente pobre, guiado pela busca da felicidade, educa bem, dá saúde a todos, é organizado, seguro, belo! E limpo, sem poluição sonora, sem outdoors, sem apelos consumistas. Demonstra que seu caminho da felicidade não é utópico. Existe como fato. Vê-se. E faz a nós muito bem.
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Há uma série de sinais manuscritos no acostamento da sinuosa estrada montanhosa que liga o aeroporto à capital do Butão, Timfu. Não são avisos de reduzir a velocidade ou verificar os espelhos, e sim mantras de afirmação da vida. "A vida é uma jornada! Complete-a!", diz um deles, enquanto outro sugere ao motorista que "permita que a natureza seja o seu guia". Um terceiro, à beira de uma curva perigosa, diz simplesmente: "Lamenta-se o inconveniente".
É uma recepção adequadamente animadora para quem visita este reino remoto, um lugar de antigos monastérios, bandeiras de oração ao vento e deslumbrante beleza natural. Há menos de 40 anos, o Butão abriu suas fronteiras pela primeira vez. Desde então, ganhou o status quase mítico de um Xangri-Lá da vida real, em grande parte graças à sua determinada e metódica busca pelo mais fugidio dos conceitos: a felicidade nacional.
Desde 1971, o país rejeitou o PIB (produto interno bruto) como sendo a única forma de mensurar o progresso. Em seu lugar, tem defendido uma nova abordagem para o desenvolvimento, que mede a prosperidade por meio de princípios formais da felicidade interna bruta (FIB) e da saúde espiritual, física, social e ambiental dos seus cidadãos e do ambiente natural.
Há três décadas essa crença de que o bem-estar deve se sobrepor ao crescimento material permanece como uma peculiaridade em nível global. Agora, num mundo acossado pelo colapso dos sistemas financeiros, por uma flagrante iniquidade e por uma destruição ambiental em grande escala, a abordagem deste pequeno Estado budista está atraindo muito interesse.
Enquanto as potências mundiais concluíram no último sábado a conferência da ONU sobre a mudança climática, em Doha, começava a ganhar força o duro alerta butanês de que o resto do mundo está numa rota suicida do ponto de vista ambiental e econômico. No ano passado, a ONU adotou o apelo do Butão por uma abordagem holística para o desenvolvimento, o que teve o aval de 68 países. Uma comissão da ONU analisa atualmente maneiras de replicar o modelo butanês da FIB em escala global.
Enquanto representantes em Doha lutavam para encontrar um consenso a respeito das emissões globais de gases do efeito estufa, o Butão estava sendo citado como um exemplo de nação em desenvolvimento que colocou a conservação ambiental e a sustentabilidade no centro da sua pauta política. Nos últimos 20 anos, o Butão dobrou sua expectativa de vida, matriculou quase 100% das suas crianças em escolas primárias e reformulou sua infraestrutura.
Ao mesmo tempo, ao colocar o mundo natural no coração das políticas públicas, a proteção ambiental está assegurada pela Constituição. O país prometeu se manter neutro nas suas emissões de carbono, e garantiu que pelo menos 60% das suas terras permanecerão perpetuamente cobertas por florestas. O governo proibiu a exportação de madeira, e chegou a estimular um dia mensal do pedestre, em que todos os veículos particulares ficam proibidos de circular.
"É fácil garimpar a terra, pescar nos mares e ficar rico", diz o ministro butanês da Educação, Thakur Singh Powdyel, um dos mais eloquentes porta-vozes da FIB. "Mas acreditamos que não se pode ter uma nação próspera em longo prazo se ela não conservar o seu ambiente natural nem cuidar do bem-estar da sua gente, o que está sendo provado pelo que está acontecendo no mundo exterior."
Powdyel acredita que o mundo se equivoca quanto à busca do Butão. "As pessoas sempre perguntam como seria possível ter uma nação de gente feliz. Mas isso é não entender a questão", diz ele. "A FIB é uma aspiração, um conjunto de princípios orientadores por meio dos quais estamos navegando rumo a uma sociedade sustentável e equitativa. Acreditamos que o mundo precisa fazer o mesmo antes que seja tarde demais."
Os princípios do Butão são estabelecidos como política por meio do índice nacional de felicidade bruta, que leva em conta o desenvolvimento social equitativo, a preservação cultural, a conservação do meio ambiente e a promoção da boa governança.
MEDITAÇÃO
Numa escola primária de Timfu, a diretora Choki Dukpa observa seus alunos a caminho das aulas. Ela diz que notou enormes mudanças no bem-estar emocional das crianças desde que os princípios da FIB foram integrados ao sistema educacional, quatro anos atrás. Ela admite que, de início, não tinha ideia do que significava a política governamental de transformar todas as unidades de ensino em "escolas verdes".
"Soava bem, mas eu não tinha certeza de como iria funcionar", diz ela. Mas depois que o Unicef (agência da ONU para a infância) financiou um programa de treinamento para professores das "escolas verdes", as coisas melhoraram. "A ideia de ser verde não significa só o ambiente, é uma filosofia de vida", diz Dukpa.
Além de matemática e ciências, as crianças aprendem técnicas agrícolas básicas e proteção ambiental. Um novo programa nacional de gestão de resíduos permite que todo material usado na escola seja reciclado.
A infusão da FIB na educação também levou a sessões diárias de meditação e à adoção de música tradicional calma no lugar do estridente sino escolar.
"Uma educação não significa só ter boas notas, significa preparar [os alunos] para serem boas pessoas", diz Dukpa. "Essa próxima geração vai enfrentar um mundo muito assustador, à medida que as mudanças ambientais e as pressões sociais aumentarem. Precisamos prepará-la para isso."
Apesar do seu foco no bem-estar nacional, o Butão enfrenta enormes desafios. Ele continua sendo uma das nações mais pobres do planeta. Um quarto dos seus 800 mil habitantes sobrevive com menos de US$ 1,25 por dia, e 70% vivem sem eletricidade. O país enfrenta um aumento da criminalidade violenta, uma crescente cultura de gangues e pressões decorrentes da expansão populacional e do aumento dos preços alimentícios.
Ele se depara também com um futuro cada vez mais incerto. Os representantes butaneses nas discussões climáticas de Doha estão alertando que o seu modelo de felicidade nacional bruta poderia sucumbir diante da mudança climática e das crescentes pressões ambientais e sociais.
"O objetivo de estarmos abaixo de um aumento global de dois graus [Celsius] na temperatura, que está sendo discutido aqui nesta semana, não é suficiente para nós. Somos uma nação pequena, temos grandes desafios e estamos no empenhando ao máximo, mas não podemos salvar nosso ambiente por conta própria", diz Thinley Namgyel, que dirige a divisão nacional de mudança climática.
"O Butão é um país montanhoso, altamente vulnerável a condições climáticas extremas. Temos uma população altamente dependente do setor agrícola. Estamos apostando na energia hidrelétrica como o motor que irá financiar o nosso desenvolvimento."
Em Paro, uma região agrícola uma hora da capital, Dawa Tshering explica como o clima já está lhe causando problemas. O agricultor de 53 anos cresceu em Paro, cercado por montanhas e regatos, mas acha cada vez mais difícil cultivar seu arrozal de 0,8 hectare.
"O clima mudou muito: não há neve no inverno, as chuvas vêm nas horas erradas, e as nossas plantas ficam arruinadas. Há tempestades violentas", diz ele. Cerca de 70% dos butaneses são pequenos agricultores como Tshering.
"A temperatura ficou mais alta, então há mais insetos nas frutas e nos grãos. Não entendo isso, mas se continuar vamos ter muitos problemas para cultivar alimentos e para nos alimentarmos."
O Butão está tomando providências para se proteger. Um inovador trabalho está sendo feito para tentar reduzir o potencial de inundações nos seus remotos lagos glaciais. Mas não dá para o país fazer isso sozinho. Na semana passada, em Doha, ativistas pediram mais apoio a países como o Butão, que estão altamente vulneráveis à mudança climática.
"Embora agora o mundo esteja começando a olhar para o Butão como um modelo alternativo de economia sustentável, todos os seus esforços podem ser desfeitos se o mundo não agir em Doha", diz Stephen Pattison, do Unicef no Reino Unido.
"Países pequenos e em desenvolvimento, como o Butão, precisam obter mais apoio, e o Reino Unido e outros governos devem começar realmente a agir, como ao comprometer sua parte em dinheiro para o fundo climático verde, e colocá-lo em funcionamento assim que possível."
Em Paro, adolescentes de uniforme escolar, voltando para casa depois das aulas, estão bastante cientes dos tempos difíceis que esperam o Butão em sua tentativa de navegar numa rota entre a preservação da sua agenda sustentável e as realidades globais à sua frente. Todos se dizem orgulhosos de serem butaneses. Eles querem ser guardas florestais, cientistas ambientais e músicos. Ao mesmo tempo, eles querem viajar o mundo, escutar música pop coreana e assistir a "Rambo".
"Quero poder sair e ver o mundo, mas aí quero voltar para casa no Butão, e que ele esteja igual", diz Kunzang Jamso, 15, cujo traje tradicional faz contraponto com um corte de cabelo que lembra um artista de banda adolescente. "Acho que precisamos evitar que o mundo exterior venha muito para cá, porque podemos perder nossa cultura, e se você não tem isso, aí como você sabe quem você é?"
Folha de São Paulo.
Tradução de RODRIGO LEITE.
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